Frei Raniero Cantalamessa ao CHARIS:
Renovação Carismática, uma corrente de graça para toda a Igreja
“Parto da convicção, compartilhada por todos
nós e frequentemente repetida pelo Papa Francisco, de que a Renovação
Carismática Católica (RCC) é “uma corrente de graça para toda a Igreja”. Se a
RCC é uma corrente de graça para toda a Igreja, temos o dever de explicar a nós
mesmos e à Igreja em que consiste esta corrente de graça e porque ela é
destinada e necessária a toda a Igreja. Explicar, brevemente, o que somos e o
que oferecemos – melhor, o que Deus oferece – à Igreja com esta corrente de
graça.
Até o momento não estivemos em
condições – nem podíamos estar – de dizer com clareza o que é a Renovação
Carismática. É necessário, portanto, experimentar uma forma de vida antes de
poder defini-la. Assim aconteceu sempre no passado, por ocasião do aparecimento
de novas formas de vida cristã. Pobres daqueles movimentos e ordens religiosas
que nascem com tantas regras e constituições estabelecidas minuciosamente desde
o início, para depois colocá-las em prática como um protocolo a ser seguido. É
a vida que, progredindo, adquire uma fisionomia e se dá uma regra, como o rio
que, avançando, cava seu próprio leito.
Devemos reconhecer que, até o momento,
temos dado à Igreja ideias e representações da Renovação Carismática diferentes
e, às vezes, contraditórias. Bastaria fazer uma breve sondagem entre as pessoas
que vivem fora dela para nos darmos conta da confusão que reina acerca da
identidade da Renovação Carismática.
Para alguns, ela é um movimento de
“entusiastas”, não diverso dos movimentos “entusiastas e iluminados” do
passado, o povo do Aleluia, das mãos erguidas, que rezam e cantam em uma
linguagem incompreensível, um fenômeno, no fim das contas, emocional e
superficial. Posso afirmá-lo, com conhecimento de causa, pois eu também fui,
por certo tempo, daqueles que pensavam assim. Para outros, ela é identificada
com pessoas que fazem orações de cura e realizam exorcismos; para outros,
ainda, trata-se de uma “infiltração” protestante e pentecostal na Igreja
católica. Na melhor das hipóteses, a Renovação Carismática é vista como uma
realidade à qual se pode confiar tantas coisas na paróquia, mas com a qual é
melhor não se envolver. Como alguém disse, ama-se os frutos da Renovação, mas
não a árvore.
Após 50 anos de vida e de experiência,
e por ocasião da inauguração do novo organismo de serviço, a CHARIS, talvez
tenha chegado o momento de tentar fazer uma releitura desta realidade e dar-lhe
uma definição, ainda que não definitiva, estando o seu caminho por nada
concluído.
Acredito que a essência desta corrente
de graça esteja providencialmente contida em seu nome “Renovação Carismática”,
desde que se compreenda o verdadeiro significado destas duas palavras. É o que
me proponho a fazer, dedicando a primeira parte da minha exposição ao
substantivo “Renovação” e a segunda parte ao adjetivo “carismática”.
PRIMEIRA PARTE: “RENOVAÇÃO”
É necessário fazer uma premissa de
caráter geral para entender a relação que existe entre o substantivo
“renovação” e o adjetivo “carismático”, e o que cada um deles representa.
Na Bíblia, emergem claramente dois
modos de operar do Espírito de Deus. Há, primeiramente, o modo que podemos
chamar de carismático. Este consiste no fato de que o Espírito de Deus vem
sobre algumas pessoas, em circunstâncias particulares, e lhes confere dons e
capacidades além do alcance humano para desempenhar a tarefa que Deus espera
delas. Fala-se do Espírito de Deus que vem sobre algumas pessoas e lhes confere
dons artísticos para a construção do templo.[1] A característica deste modo de
operar do Espírito de Deus é que ele é dado a uma pessoa, mas não para a
própria pessoa, para torná-la mais agradável a Deus, mas, antes, pelo bem da
comunidade, para o serviço.
Apenas num segundo momento,
praticamente após o exílio, inicia-se a falar de um modo diverso de operar do
Espírito de Deus, um modo que, em seguida, chamar-se-á ação santificadora do
Espírito (2Ts 2,13). Pela primeira vez, no Salmo 51, o Espírito é definido
“santo”: “não retireis de mim o vosso Santo Espírito”. O testemunho mais claro
é a profecia de Ezequiel 36,26-27:
Eu vos darei um coração novo e porei
um espírito novo dentro de vós. Arrancarei do vosso corpo o coração de pedra e
vos darei um coração de carne; porei o meu espírito dentro de vós e farei com
que sigais a minha lei e cuideis de observar os meus mandamentos.
A novidade deste modo de agir do
Espírito é que ele vem sobre uma pessoa e permanece nela, e a transforma desde
dentro, dando-lhe um coração novo e uma capacidade nova de observar a lei. Em
seguida, a teologia chamará o primeiro modo de agir do Espírito “gratia gratis
data”, dom gratuito, e o segundo, “gratia gratum faciens”, graça que torna
agradável a Deus.
Passando do Antigo ao Novo Testamento,
este dúplice modo de agir do Espírito se torna ainda mais claro. Basta ler
primeiramente o capítulo 12 da Primeira Carta aos Coríntios, onde se fala de
todo tipo de carismas, e depois passar ao capítulo sucessivo, o 13, onde se
fala de um dom único, igual e necessário para todos, que é a caridade. Esta
caridade é “o amor de Deus derramado em nossos corações pelo Espírito Santo”
(Rm 5,5), o amor – assim o define Santo Tomás de Aquino – “com o qual Deus nos
ama e com o qual nos torna capazes de amá-lo e os irmãos”[2].
A relação entre a obra santificadora
do Espírito e a sua ação carismática é vista por Paulo como a relação que
existe entre o ser e o agir e como a relação que existe entre a unidade e a
diversidade na Igreja. A ação santificadora se refere ao ser do cristão, os
carismas se referem ao agir, são para o serviço (1Cor 12,7; 1Pd 4,10); a primeira
coisa funda a unidade da Igreja, a segunda, a variedade das suas funções. Sobre
isso, basta ler Efésios 4, 4-13. Neste, o Apóstolo expõe primeiramente o que
funda o ser do cristão e a unidade de todos os fiéis: um só corpo, um só
Espírito, um só Senhor, uma só fé, para passar a falar da “graça dada a cada um
conforme a medida do dom de Cristo”: apóstolos, evangelistas, mestres…
O Apóstolo não se limita a pôr em
evidência os dois modos de operar do Espírito, mas afirma também a prioridade
absoluta da ação santificadora sobre a ação carismática. O agir depende do ser
(agere sequitur esse), não o contrário. Paulo aborda brevemente a maioria dos
carismas – falar todas as línguas, possuir o dom da profecia, conhecer todos os
mistérios, distribuir tudo aos pobres – e conclui que, sem a caridade, não
serviriam a nada a quem os exerce, ainda que possam servir a quem os recebe.
Tudo o que eu disse sobre a ação
renovadora e santificadora do Espírito está contido no substantivo “Renovação”.
Por que justamente este termo? Por que chamamos “Seminário de vida nova no
Espírito” o instrumento com o qual nos preparávamos para receber o batismo no Espírito?
A ideia de novidade acompanha do início ao fim a revelação da ação
santificadora do Espírito. Já em Ezequiel, fala-se de um “Espírito novo”. João
fala de um “nascer de novo da água e do Espírito (Jo 3,5). Mas é sobretudo São
Paulo que vê na “novidade” o que caracteriza toda a “nova aliança” (2Cor 3,6).
Ele define o fiel como “homem novo” (Ef 2,15; 4,24) e o batismo como “um banho
de renovação no Espírito Santo” (Tt 3,5).
O que deve ser imediatamente posto às
claras é que esta vida nova é a vida trazida por Cristo. É ele que, ressurgindo
da morte, deu-nos a possibilidade, graças ao nosso batismo, de “levarmos uma
vida nova” (Rm 6,4). Ela é, portanto, dom, antes que um dever, um “fato”, antes
que um “deve ser feito”. Sobre este ponto, faz-se necessária uma revolução
copernicana na mentalidade comum do fiel católico (não na doutrina oficial da
Igreja!), e é esta uma das contribuições mais importantes que a Renovação
Carismática pode dar – e, em parte, já tem dado – à vida da Igreja. Por
séculos, insistiu-se tanto na moral, no dever, no deve ser feito para
conquistar a vida eterna, a ponto de se inverter a relação e se pôr o dever
antes do dom, fazendo da graça o efeito, ao invés da causa, das nossas boas
obras.
A Renovação Carismática, concretamente
o batismo no Espírito, operou dentro de mim aquela revolução copernicana de que
falei, e, por isso, estou intimamente convencido de que ela pode operá-la em
toda a Igreja. E é a revolução da qual depende a possibilidade de reevangelizar
o mundo pós-cristão. A fé desabrocha na presença do kerygma, não na presença da
didaché, ou seja, não na presença da teologia, da apologética, da moral. Estas
coisas são necessárias para “formar” a fé e levá-la à perfeição da caridade,
mas não estão em condições de gerá-la. O cristianismo, diferentemente de
qualquer outra religião, não começa dizendo aos homens o que devem fazer para
salvarem-se; começa dizendo o que Deus fez, em Cristo Jesus, para salvá-los. É
a religião da graça.
Em que consiste a vida nova no
Espírito
Mas agora chegou o momento de descer
mais ao concreto, e ver em que consiste e como se manifesta a vida nova no
Espírito, e, portanto, em que consiste a verdadeira “Renovação”. Apoiamo-nos em
São Paulo e, mais precisamente, na sua Carta aos Romanos, pois é aí que, quase
programaticamente, são expostos os seus elementos constitutivos.
Uma vida vivida na lei do Espírito
A vida nova é, primeiramente, uma vida
vivida “na lei do Espírito”.
“Não há mais condenação para aqueles
que estão em Cristo Jesus. Pois a lei do Espírito que dá a vida em Jesus Cristo
te libertou da lei do pecado e da morte” (Rm 8,1-2).
Não se entende o que significa a
expressão “lei do Espírito”, se não a partir do evento de Pentecostes. No
Antigo Testamento, existiam duas interpretações fundamentais da festa de
Pentecostes. No início, Pentecostes era a festa da colheita (cf. Nm 28,26ss),
quando se oferecia a Deus as primícias do trigo (cf. Ex 23,16; Dt 16,9). Mas,
sucessivamente, e certamente no tempo de Jesus, a festa se enriquecera de um novo
significado. Era a festa que recordava a outorga da lei no Monte Sinai e a
aliança estabelecida entre Deus e o seu povo; a festa, enfim, que comemorava os
acontecimentos descritos em Ex 19-20. “Este dia da festa das semanas – reza um
texto da atual liturgia hebraica de Pentecostes (Shavuot) – é o tempo do dom da
nossa Torá”.
O que vem a nos dizer, sobre nosso
Pentecostes, esta aproximação? O que significa, em outras palavras, o fato de
que o Espírito Santo desce sobre a Igreja justamente no dia em que Israel
recordava o dom da lei e da aliança? Já Santo Agostinho se fazia esta pergunta
e dava a seguinte resposta. Cinquenta dias após a imolação do cordeiro no
Egito, no monte Sinai, o dedo de Deus escreveu a lei de Deus em tábuas de
pedra, e eis que, cinquenta dias depois da imolação do verdadeiro Cordeiro de
Deus, que é Cristo, novamente o dedo de Deus, o Espírito Santo, escreveu a lei;
mas desta vez não em tábuas de pedra, mas nas tábuas de carne dos corações[3].
Esta interpretação se fundamenta, ela
mesma, na afirmação de Paulo que define a comunidade da nova aliança como uma
“carta de Cristo, escrita não com tinta, mas com o Espírito de Deus vivo,
gravada não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, dos corações” (cf. 2Cor
3,3).
De um lance, iluminam-se as profecias
de Jeremias e de Ezequiel sobre a nova aliança: “Esta será a aliança que
concluirei com a casa de Israel, depois desses dias, diz o Senhor: imprimirei
minha lei em suas entranhas, e hei de inscrevê-la em seu coração; serei seu
Deus e eles serão meu povo” (Jr 31,33). Não mais em tábuas de pedra, mas nos
corações; não mais uma lei exterior, mas uma lei interior.
Como age, concretamente, esta nova
lei, que é o Espírito, e em que sentido pode-se chamar de “lei”? Age através do
amor! A nova lei é o que Jesus chama de “mandamento novo” (Jo 13,34). O
Espírito Santo escreveu a nova lei em nossos corações, infundindo neles o amor:
“O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos
foi dado” (Rm 5,5). Este amor, explicou-nos Santo Tomás, é o amor com o qual
Deus nos ama e com o qual, contemporaneamente, faz com que nós possamos amá-lo
em resposta e amar o próximo. É uma capacidade nova de amar.
Há dois modos com os quais o homem
pode ser induzido a fazer, ou a não fazer, uma certa coisa: ou por coerção ou
por atração; a lei exterior o induz do primeiro modo, por coerção, com a ameaça
do castigo; o amor o induz do segundo modo, por atração. Cada um, de fato, é
atraído por aquilo que ama, sem que sofra qualquer coerção do exterior. A vida
cristã deve ser vivida por atração, não por coerção, por amor, não por temor.
Uma vida de filhos de Deus
Em segundo lugar a vida nova no
Espírito é uma vida de filhos de Deus. Escreve ainda o Apóstolo:
“Todos aqueles que se deixam conduzir
pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. De fato, vós não recebestes um
espírito de escravos, para recairdes no medo, mas recebestes um espírito de
filhos adotivos, no qual todos nós clamamos: Abá – ó Pai! O próprio Espírito se
une ao nosso espírito para nos atestar que somos filhos de Deus” (Rm 8,14-16).
Esta é uma ideia central da mensagem
de Jesus e de todo o Novo Testamento. Graças ao batismo que nos enxertou em
Cristo, nós nos tornamos filhos no Filho. O que, portanto, pode trazer de novo
a Renovação Carismática neste campo? Algo importantíssimo, isto é, a descoberta
e a tomada de consciência existencial da paternidade de Deus, o que tem feito
cair em lágrimas mais de uma pessoa no momento do batismo no Espírito. De
direito, nós somos filhos pelo batismo, mas, de fato, nós nos tornamos graças a
uma ação do Espírito Santo que continua na vida.
Uma vida no senhorio de Cristo
Enfim, a vida nova é uma vida no
Senhorio de Cristo. Escreve o Apóstolo:
“Se, com tua boca, confessares Jesus
como Senhor e, no teu coração, creres que Deus o ressuscitou dos mortos, serás
salvo” (Rm 10,9).
E, de novo, logo depois, na mesma
Carta:
Ninguém dentre nós vive para si mesmo
ou morre para si mesmo. Se estamos vivos, é para o Senhor que vivemos; se
morremos, é para o Senhor que morremos. Portanto, vivos ou mortos, pertencemos
ao Senhor. Cristo morreu e ressuscitou exatamente para isto, para ser o Senhor
dos mortos e dos vivos. (Rm 14,7-9).
Este conhecimento especial de Jesus é
obra do Espírito Santo: “Ninguém pode dizer: Jesus é o Senhor a não ser no
Espírito Santo” (1Cor 12,3). O dom mais evidente que eu recebi na ocasião do
meu batismo no Espírito foi a descoberta do Senhorio de Cristo. Até então, eu
era um estudioso de cristologia, realizava cursos e escrevia livros sobre as
doutrinas cristológicas antigas; o Espírito Santo me converteu da cristologia a
Cristo. Que emoção ao escutar, em julho de 1977, no estádio de Kansas City, 40
mil fiéis de várias denominações cristãs cantando: He’s Lord, He’is Lord. He’s
risen from the dead and He is Lord. Every knee shall bow, every tongue confess
that Jesus Christ is Lord” (“Ele é o Senhor, Ele é o Senhor. Ele ressurgiu dos
mortos e Ele é o Senhor. Todo joelho se dobre, toda língua confesse que Jesus
Cristo é o Senhor”, N. do T.). Para mim, até então observador externo da
Renovação, aquele canto tinha ressonâncias cósmicas, apelava ao que está nos
céus, na terra e abaixo dela. Por que não repetir, em uma ocasião como esta,
aquela experiência e proclamar juntos, no canto, o senhorio de Cristo…?
Cantemos em inglês, quem souber…
O que há de especial, na proclamação
de Jesus como Senhor, que a faz tão diversa e determinante? É que, com ela, não
se faz apenas uma profissão de fé, mas se toma uma decisão pessoal. Quem a
pronuncia, decide o sentido da sua vida. É como se dissesse: “Tu és o meu
Senhor; eu me submeto a ti, eu te reconheço livremente como o meu salvador, o
meu chefe, o meu mestre, aquele que tem todos os direitos sobre mim. Eu te
entrego com alegria as rédeas da minha vida”.
Esta redescoberta luminosa de Jesus
como Senhor é talvez a mais bela graça que, em nossos tempos, Deus tem
concedido à sua Igreja, através da RCC. No início, a proclamação de Jesus como
Senhor (Kyrios) foi, para a evangelização, o que a relha é para o arado: aquela
espécie de espada que, primeiro, fende o terreno e permite ao arado traçar o
sulco. Sobre este ponto, infelizmente, incide uma mudança na passagem do
ambiente judaico ao helenístico. No mundo judaico, o título Adonai, Senhor,
sozinho, bastava para proclamar a divindade de Cristo. E, de fato, é com ele
que, no dia de Pentecostes, Pedro proclama Jesus Cristo ao mundo: “Que todo o
povo de Israel reconheça com plena certeza: Deus constituiu Senhor e Cristo a
este Jesus que vós crucificastes” (At 2,36).
Na pregação aos pagãos, esse título
não era mais suficiente. Tantos, a partir do imperador romano, faziam-se chamar
de Senhores. Nota-o com tristeza o Apóstolo: “Existem muitos deuses e senhores,
para nós, porém, existe um só Senhor, Jesus Cristo” (cf. 1Cor 8,5-6). Já no
século III, o título de Senhor não é mais compreendido em seu significado
kerigmático; é considerado o título próprio para quem ainda está no estágio de
“servo” e do temor, inferior, portanto, ao título de Mestre, que é próprio para
o “discípulo” e o amigo[4]. Continua-se, certamente, a falar de Jesus “Senhor”,
mas este se tornou um título como os outros, ou melhor, mais frequentemente, um
dos elementos do nome completo de Cristo: “Nosso Senhor Jesus Cristo”. Mas uma
coisa é dizer “nosso Senhor Jesus Cristo”, outra, dizer: “Jesus Cristo é o
nosso Senhor!” (com o ponto de exclamação).
Onde está, em tudo isso, o salto de
qualidade que o Espírito Santo nos proporciona fazer no conhecimento de Cristo?
Está no fato de que a proclamação de Jesus Senhor é a porta que dá acesso ao
conhecimento do Cristo ressuscitado e vivo! Não mais um Cristo personagem, mas
pessoa; não mais um conjunto de teses, de dogmas (e das heresias
correspondentes), não mais apenas objeto de culto e de memória, mas realidade
viva no Espírito. Entre este Jesus vivo e o dos livros e das doutas discussões
sobre ele, corre a mesma diferença que há entre o céu verdadeiro e um céu
desenhado em uma folha de papel. Se quisermos que a nova evangelização não
permaneça um pio desejo, devemos recolocar a “relha” na frente do arado, o
kerygma na frente da parênese.
A experiência comum do senhorio de
Cristo é também o que mais impele à unidade dos cristãos, como vemos que ocorre
aqui, entre nós. Uma das tarefas prioritárias da CHARIS, segundo as indicações
do Santo Padre, é justamente a de promover, com todos os meios, esta unidade
entre todos os fiéis em Cristo, no respeito recíproco da própria identidade.
Uma corrente de graça para toda a
Igreja
Creio que, neste ponto, esteja claro
porque dizemos que a Renovação Carismática é uma corrente de graça para toda a
Igreja. Tudo o que a palavra de Deus nos tem revelado sobre a vida nova em
Cristo – uma vida vivida segundo a lei do Espírito, uma vida de filhos de Deus
e uma vida no Senhorio de Cristo –, tudo isso não é senão a essência da vida e
da santidade cristã. É a vida batismal atuada em plenitude, isto é, não só
pensada e acreditada, mas vivida e proposta, e não a algumas almas
privilegiadas apenas, mas por todo o povo santo de Deus. Para muitos milhões de
fiéis, o batismo no Espírito tem sido a porta que os introduziu a esses
esplendores da vida cristã.
Uma das máximas queridas ao Papa
Francisco é que “a realidade é superior à ideia”[5], e, portanto, que o vivido
é superior ao pensado. Creio que a Renovação Carismática pode ser (e, em parte,
tem sido) de grande ajuda para fazer passar as grandes verdades da fé do
pensado ao vivido, para fazer passar o Espírito Santo dos livros de teologia à
experiência dos fiéis.
São João XXIII concebeu o Concílio
Vaticano como a ocasião para um “novo Pentecostes” para a Igreja. O Senhor
respondeu a esta oração do Papa além de qualquer expectativa. Mas o que
significa “um novo Pentecostes”? Ele não pode consistir apenas em um novo
florescimento de carismas, de ministérios, de sinais e prodígios, em um sopro
de ar fresco no rosto da Igreja. Estas coisas são o reflexo e o sinal de algo
mais profundo. Um novo Pentecostes, para ser realmente tal, deve acontecer na
profundidade que nos revelou o Apóstolo; deve renovar o coração da Esposa, não
apenas o seu vestido.
Para ser, contudo, a corrente de graça
que descrevemos, a Renovação Carismático precisa ela mesma se renovar, e a isso
quer contribuir a instituição da CHARIS. “Não se pense – escrevia Orígenes, no
século III – que basta se renovar uma única vez; é preciso renovar a mesma
novidade: ‘Ipsa novitas innovanda est’”[6]. Não há que se surpreender com isso.
É o que acontece em todo projeto de Deus no momento em que é colocado nas mãos
do homem.
Logo após a minha adesão à Renovação,
um dia, em oração, fui tomado por alguns pensamentos. Parecia-me intuir o que o
Senhor estava fazendo de novo na Igreja; peguei uma folha de papel e uma caneta
e escrevi alguns pensamentos, dos quais eu mesmo me surpreendi, tão pouco, eram
fruto da minha reflexão. Encontram-se publicados em meu livro La sobria ebbrezza
dello Spirito (“A sóbria embriaguez do Espírito”, N. do T.), mas me permito
compartilhar-lhes de novo, pois me parece ser o ponto do qual devemos
reiniciar.
“O Pai quer glorificar o seu Filho
Jesus Cristo na terra de maneira nova, com uma invenção nova. O Espírito Santo
é agente desta glorificação, pois está escrito: ‘Ele me glorificará e receberá
do que é meu’. Uma vida cristã inteiramente consagrada a Deus, sem fundador,
nem regra, nem congregação novos. Fundador: Jesus! Regra: o Evangelho interpretado
pelo Espírito Santo! Congregação: a Igreja! Não se preocupar com o amanhã, não
querer fazer coisas que permaneçam, não querer erguer organismos reconhecidos
que se perpetuem com sucessores… Jesus é um Fundador que nunca morre, por isso,
não precisa de sucessores. É preciso deixá-lo sempre fazer coisas novas, também
amanhã. O Espírito Santo existirá também amanhã na Igreja!”
SEGUNDA PARTE: “CARISMÁTICO”
Agora chegou o momento de passar à
segunda parte do meu discurso, que será bem mais breve: o que acrescenta o
adjetivo “Carismático” ao nome “Renovação”. Primeiramente, é importante dizer
que “carismático” deve permanecer um adjetivo e jamais se tornar um
substantivo. Em outras palavras, deve-se evitar absolutamente, de nossa parte,
o uso do termo “os carismáticos”, para indicar as pessoas que fizeram a
experiência da Renovação. No caso, use-se a expressão “cristãos renovados”, mas
não carismáticos. O uso deste nome suscita justamente ressentimento, pois cria
discriminação entre os membros do corpo de Cristo, quase como se alguns fossem
dotados de carismas e outros não.
Não quero fazer aqui um ensinamento
sobre carismas, dos quais há tantas ocasiões para falar. A minha intenção é
mostrar como, também enquanto realidade carismática, a Renovação é uma corrente
de graça destinada a toda a Igreja. Para ilustrar esta afirmação, é necessário
dar uma rápida olhada na história dos carismas na Igreja.
A redescoberta dos carismas no
Vaticano II
O que tinha acontecido, na realidade,
aos carismas após sua tumultuosa aparição nos inícios da Igreja? Os carismas
não tinham desaparecido tanto da vida da Igreja, quanto mais da sua teologia.
Se revisitarmos a história da Igreja, tendo em mente as várias listas de
carismas do Novo Testamento, devemos concluir que, com exceção talvez do “falar
em línguas” e da “interpretação das línguas”, nenhum dos carismas foi
completamente perdido.
Então, onde está a novidade que nos
permite falar de um despertar dos carismas em nossa época? O que estava ausente
antes? Os carismas, do seu âmbito próprio da utilidade comum e da “organização
da Igreja”, tinham sido progressivamente confinados no âmbito privado e
pessoal. Não mais entravam na constituição da Igreja.
Na vida da comunidade cristã
primitiva, os carismas não eram fatos privados, eram o que, juntamente com a
autoridade apostólica, delineavam a fisionomia da comunidade. Apóstolos e
profetas eram as duas forças que, juntas, guiavam a comunidade. Bem cedo, o
equilíbrio entre as duas instâncias – a do ofício e a do carisma – rompe-se em
vantagem do ofício. Um elemento determinante foi o surgimento das primeiras
falsas doutrinas, especialmente as gnósticas. Foi este fato que fez pender
sempre mais a agulha da balança para os detentores do ofício, os pastores. Um
outro fato foi a crise do movimento profético difundido por Montano na Ásia
Menor no século II, que serviu para desacreditar ainda mais um certo tipo de
entusiasmo carismático coletivo.
Deste fato fundamental derivam todas
as consequências negativas acerca dos carismas. Os carismas são relegados às
margens da vida da Igreja. Desaparecem sobretudo aqueles carismas que tinham
como terreno de exercício o culto e a vida da comunidade: o falar inspirado e
glossolalia, os chamados carismas pentecostais. A profecia vem a se reduzir ao
carisma do magistério de interpretar autenticamente e infalivelmente a
revelação (esta era a definição da profecia nos tratados de eclesiologia que se
estudavam a meu tempo).
Busca-se justificar também
teologicamente esta situação. Segundo uma teoria frequentemente repetida por
São João Crisóstomo e depois, até a vigília do Vaticano II, certos carismas
seriam reservados à Igreja em seu “estado nascente”, mas depois teriam
“cessado”, como não mais necessários à economia geral da Igreja[7].
Outra consequência inevitável é a
clericalização dos carismas. Ligados à santidade pessoal, eles acabam por ser
associados quase sempre aos representantes habituais desta santidade: pastores,
monges, religiosos. Do âmbito da eclesiologia, os carismas passam ao da
hagiografia,isto é, ao estudo da vida dos santos. O lugar dos carismas é tomado
pelos “Sete dons do Espírito” que, no início (em Isaías 11) e até a
Escolástica, não eram outra coisa senão uma categoria particular de carismas,
aqueles prometidos ao rei messiânico e, em seguida, àqueles que têm a tarefa do
governo pastoral.
Esta é a situação a que o Concílio
Vaticano II quis remediar. Em um dos documentos mais importantes do Vaticano
II, lemos o conhecido texto:
“O Espírito Santo não só santifica e
conduz o Povo de Deus por meio dos sacramentos e ministérios e o adorna com
virtudes, mas ‘distribuindo a cada um os seus dons como lhe apraz’ (1Cor
12,11), distribui também graças especiais entre os fiéis de todas as classes,
as quais os tornam aptos e dispostos a tomar diversas obras e encargos,
proveitosos para a renovação e cada vez mais ampla edificação da Igreja,
segundo aquelas palavras: ‘a cada qual se concede a manifestação do Espírito em
ordem ao bem comum’ (1Cor 12,7). Estes carismas, quer sejam os mais elevados,
quer também os mais simples e comuns, devem ser recebidos com ação de graças e
consolação”[8].
Este texto não é uma nota marginal
dentro da eclesiologia do Vaticano II; antes, é sua coroação. É o modo mais
claro e mais explícito de afirmar que, ao lado da dimensão hierárquica e
institucional, a Igreja tem uma dimensão pneumática e que a primeira está em
função e a serviço da segunda. Não é o Espírito que está a serviço da
instituição, mas a instituição a serviço do Espírito.
A essa altura, concluído o Concílio e
reunidos em um volume os seus decretos, o perigo de marginalizar os carismas se
reapresentava sob outra forma, não menos perigosa: a de permanecer um belo
documento que os estudiosos não se cansam de estudar e os pregadores de citar.
O Senhor preveniu, ele mesmo, sobre este perigo, dando a ver com os próprios
olhos, àquele que quisera fortemente o texto sobre os carismas, que eles tinham
voltado não apenas à teologia, mas também à vida do povo de Deus. Quando, pela
primeira vez, em 1973, o Cardeal Leo Suenens, ouviu falar da Renovação
Carismática Católica, surgida nos Estados unidos, estava escrevendo um livro
intitulado “O Espírito Santo, nossa esperança”, e eis o que ele conta em suas
memórias:
“Parei de escrever o livro. Pensei que
fosse uma questão da mais elementar coerência prestar atenção na ação do
Espírito Santo, porquanto ela pudesse se manifestar de modo surpreendente. Eu
estava particularmente interessado na notícia do despertar dos carismas, a
partir do momento em que o Concílio tinha invocado um tal despertar”.
E eis o que escreveu após ter
constatado com os próprios olhos o que estava acontecendo na Igreja:
“Improvisamente, São Paulo e os Atos
dos Apóstolos pareciam se tornar vivos e fazer parte do presente; o que era
autenticamente verdadeiro no passado, parecer acontecer de novo sob os nossos
olhos. É uma descoberta da verdadeira ação do Espírito Santo que está sempre em
ação, como o próprio Jesus prometeu. Ele mantém a sua palavra. É de novo uma
explosão do Espírito de Pentecostes, uma alegria que tinha se tornado
desconhecida para a Igreja”[9].
Agora está claro, acredito, porque
digo que também como realidade carismática, a Renovação é uma corrente de graça
destinada e necessária a toda a Igreja. É a própria Igreja que, no Concílio,
definiu-o. Resta apenas passar da definição à atuação, dos documentos à vida. E
este é o serviço que a CHARIS, em total continuidade com a RCC do passado, é chamada
a prestar à Igreja.
Não se trata somente de fidelidade ao
Concílio, mas de fidelidade à própria missão da Igreja. Os carismas, lê-se no
texto conciliar, são “proveitosos para a renovação e cada vez mais ampla
edificação da Igreja” (talvez teria sido mais justo escrever “necessários”, no
lugar de “proveitosos”). A fé, hoje, como no tempo de Paulo e dos apóstolos,
não se transmite “com discursos persuasivos de sabedoria, mas na manifestação
do Espírito e do poder” (cf. 1Cor 2,4-5; 1Ts 1,5). Se, há um tempo, em um mundo
que se tornou, pelo menos oficialmente, “cristão”, podia-se pensar que não
havia mais necessidade de carismas, de sinais e prodígios, como no início da
Igreja, hoje não mais. Nós voltamos a estar mais próximos ao tempo dos
apóstolos do que ao de São João Crisóstomo. Eles deviam anunciar o Evangelho a
um mundo pré-cristão; nós, pelo menos no ocidente, a um mundo pós-cristão.
Eu disse até aqui que a RCC é uma
corrente de graça necessária a toda a Igreja Católica. Devo acrescentar que ela
o é duplamente para algumas igrejas nacionais que assistem há tempos a uma
dolorosa hemorragia dos próprios fiéis rumo a outras realidades carismáticas. É
bem conhecido que um dos motivos mais comuns de tal êxodo é a necessidade de
uma expressão da fé que mais responda à própria cultura: com mais espaço dado à
espontaneidade, à alegria e ao corpo; uma vida de fé em que a religiosidade
popular seja um valor acrescentado e não um substitutivo do senhorio de Cristo.
Fazem-se análises pastorais e
sociológicas do fenômeno[10] e se especulam remédios, mas se tem dificuldade em
dar-se conta de que o Espírito Santo já proveu, de maneira grandiosa, a esta
necessidade. Não se pode mais continuar a ver a RCC como parte do problema do
êxodo dos católicos, ao invés de solução do problema. Para que este remédio
seja realmente eficaz, não basta, contudo, que os pastores aprovem e encorajem
a RCC, permanecendo acuradamente fora dela. É preciso acolher na própria vida a
corrente de graça. A isso nos impulsiona o exemplo do Pastor da Igreja
universal, também com a instituição da CHARIS.
Não pretendo prolongar-me além sobre o
tema carismas e evangelização. Dele, falou-nos o nosso caro coordenador
Jean-Luc e nos falará daqui a pouco Mary Healy, que, sobre este tema, além de
uma excelente formação teológica, possui também uma notável experiência
amadurecida na área. Concluo com uma reflexão sobre o exercício dos carismas. *
* *
Como assistente eclesiástico, procurei
dar, com este ensinamento, a minha contribuição para uma correta visão da RCC
na história e no presente da Igreja. Serão, porém, o moderador e os membros do
comitê internacional a ter que carregar o peso maior deste novo início. A todos
eles, exprimo a minha fraterna amizade e a minha incondicional colaboração, até
quando o Senhor me der a força para fazê-lo. A Carta aos Hebreus recomendava
aos primeiros cristãos: “Lembrai-vos de vossos dirigentes, que vos pregaram a
palavra de Deus” (Hb 13,7). Nós devemos fazer o mesmo, recordando com afeto e
gratidão aqueles que, por primeiro, viveram e promoveram o novo Pentecostes:
Patti Mansfield, Ralph Martin, Steve Clark, Kevin e Dorothy Ranagan e todos os
outros que, em seguida, serviram à RCC no ICCRS, na Fraternidade Católica e em
outros órgãos de serviço.
Concluo com uma palavra profética que
proclamei na primeira vez que me encontrei a pregar na presença de São João
Paulo II. É a palavra que o profeta Ageu dirigiu aos chefes e ao povo de Israel
no momento em que se preparavam para reconstruir o templo:
“Mas agora, toma coragem, Zorobabel,
diz o Senhor, coragem, Josué, filho de Josedec, sumo sacerdote; coragem, povo
todo desta terra, diz o Senhor dos exércitos; ponde mãos à obra, pois eu estou
convosco”(Ag 2,4).
Coragem, Jean-Luc e membros do comitê; coragem, povo todo da RCC; coragem irmãos e irmãs de outras Igrejas cristãs que estão conosco: “ponde mãos à obra, pois eu estou convosco, diz o Senhor!”
fonte: https://cernebrasil.wordpress.com/ acesso dia 10/06/2019
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