3ª meditação: escutar a própria sede é interpretar o desejo que temos em nós
“Há em nossas culturas e, ao mesmo tempo, em nossas Igrejas, um déficit de desejo. Quando se percebe, no momento atual, o emergir, e em escala cada vez maior, de sujeitos sem desejo, isso deve levar-nos a uma autocrítica eclesial.”
Intitulada “Dei-me conta de ser sedento”, a meditação da tarde desta segunda-feira articulou-se em quatro pontos, concluindo-se com a “oração da sede”.
Perder o medo de reconhecer nossa sede
O pregador partiu de quatro verbos – irrigar, fecundar, germinar – para falar inicialmente de um processo de revitalização do terreno qual metáfora da nossa vida. Tendo advertido que a transformação não se dá se impermeabilizamos a vida em sua crosta, afirmou que devemos perder o medo de reconhecer a nossa sede e o nosso ser sedento.
Na meteorologia se usa uma tabela, o Índice de Palmer, para medir a intensidade da seca em seus vários estágios, afirmou. E a intensidade da seca espiritual, como se mede? – perguntou-se o pregador dos Exercícios.
“Intelectualizamos demasiadamente a fé. Construímos um fenomenal castelo de abstrações”, observou. “Preocupamo-nos mais com a credibilidade racional da experiência de fé do que com a sua credibilidade existencial, antropológica e afetiva”, constatou.
Feitas tais constatações, citou o teólogo canadense Bernard Lonergan, que evocava a necessidade de olhar mais, na construção doutrinal, para o significado das nossas emoções. Em suas considerações sobre o estado da nossa sede recorreu à literatura, que nos é de auxílio, ressaltou.
Escritores e poetas são importantes mestres espirituais
Em nossos dias assistimos cada vez mais a utilização da literatura ao fazer teologia, afirmou, acrescentando que hoje estamos compreendendo melhor que os escritores e os poetas são mestres espirituais importantes. Após destacar que as obras literárias podem ser de grande utilidade em nosso caminho de maturação interior, frisou que uma das razões fundamentais é que “a vida espiritual progride somente quando é uma revisitação da existência em sua totalidade, em sua diversidade.
Para tal citou, entre outros, a escritora brasileira Clarice Lispector, a qual, com a força de uma declaração autobiográfica, narra a tomada de consciência da intensidade de sua sede.
Falar de sede é falar da existência real e não da ficção de nós mesmos à qual muitas vezes nos adequamos. E iluminar uma experiência, mais que um conceito, acrescentou Pe. José Tolentino, advertindo em seguida para a dificuldade que podemos ter até mesmo de reconhecer o nosso ser sedento.
Desejo da verdade, beleza e bondade
Escutar a própria sede é interpretar o desejo existente em nós. Desejo incessante da verdade, da beleza e da bondade que faltam. O pregador dos Exercícios Espirituais propostos ao Papa e à Cúria Romana advertiu ainda que devemos distinguir o desejo de uma mera necessidade, que se aplaca e se satisfaz com a posse de um objeto. Não confundamos desejo com as necessidades. A necessidade é uma carência contingente do sujeito. O infinito do desejo é desejo de infinito.
Citou a revisitação ao “discurso platônico do desejo em chave mística” feita por Simone Weil, para quem, não é o nosso desejo que alcança Deus: “se permanecemos sedentos e desejosos, é Deus mesmo que desce em nossa humanidade para preencher o nosso desejo de plenitude”.
Enquanto desejamos objetos, quaisquer que sejam; enquanto deixamos que a nos mover seja a busca das coisas, carreiras, títulos, honorificências, nosso desejar não é ainda um verdadeiro desejar.
Hoje se torna cada vez mais claro que as sociedades capitalistas, organizadas em torno do consumo, que exploram avidamente as compulsões de satisfação de necessidades induzidas pela publicidade, estão na prática removendo a sede e o desejo tipicamente humanos, fazendo com que a vida perca seu horizonte, afirmou taxativamente Pe. José Tolentino.
Voltando seu olhar para a vida da Igreja, tais constatações serviram para o pregador dos Exercícios Espirituais propor as seguintes interpelações:
“Nós batizados formamos uma comunidade de desejosos? Os cristãos têm sonhos? A Igreja é um laboratório do Espírito onde, como no oráculo de Joel (3,1), nossos filhos e filhas profetizam, nossos anciãos têm sonhos e nossos jovens constroem novas visões, não somente religiosas, mas também novas compreensões culturais, econômicas, científicas e sociais?”
Questões mais contundentes
Tais interrogações foram propedêuticas a algumas questões mais contundentes: A Igreja tem fome e sede de justiça (Mt 5,6)? Os cristãos esperam realmente, segundo a promessa, “novos céus e uma nova terra, nos quais habita a justiça” (2Pd 3,13)?
Sede de Deus
No último ponto da meditação vespertina desta segunda-feira, no qual tratou da sede de Deus, o sacerdote português frisou que “talvez nós cristãos, e em particular nós pastores, devemos valorizar mais a espiritualidade da sede, mais que as estruturas”. “Nós cristãos e em particular nós pastores”, prosseguiu, “devemos melhor reconciliar-nos com nossa vulnerabilidade”.
Por fim, destacou que o “Papa Francisco nos recorda que uma das piores tentações é a autossuficiência e a autorreferência”. Abraçar a própria vulnerabilidade é aceder ao desejo de ser reconhecidos e tocados por Jesus.
Oração da sede
“Ensina-me, Senhor, a beber da mesma sede de Ti,
como quem se alimenta mesmo na penumbra
do frescor da fonte”…
“Que esta sede se faça mapa e viagem
palavra acesa e gesto que prepara
a mesa sobre a qual se partilha o dom.”
“E quando darei de beber a Teus filhos seja
não porque possuo a água
mas porque como eles sei o que é a sede”.